Relatório constata encarceramento e dopação de crianças em abrigos da prefeitura do Rio
Isolamento, medicalização descontrolada, falta de informações sobre resultados, orientação religiosa, confusão entre saúde e assistência, violação de diretrizes dos Ministérios da Saúde e Desenvolvimento Social, regresso à lógica manicomial: política de recolhimento compulsório é colocada em xeque após visitas de fiscalização em abrigos da prefeitura geridos por ONG
O 'Relatório de Visitas aos "Abrigos Especializados" para Crianças e Adolescentes', divulgado agora à tarde (sexta-feira, 13h30), traz conclusões preocupantes sobre a política de recolhimento compulsório da prefeitura do Rio de Janeiro e sobre a situação de meninos e meninas em situação de rua que estão sob a tutela do Estado (veja pequeno resumo abaixo). Produzido após a fiscalização de quatro abrigos localizados na zona oeste da cidade, o documento constatou o encarceramento e o uso descontrolado de medicamentos em crianças e adolescentes que supostamente seriam usuários de álcool e outras drogas, em especial o crack.
-- Baixe a íntegra do 'Relatório de Visitas aos "Abrigos Especializados" para Crianças e Adolescentes
As visitas de fiscalização foram realizadas em maio deste ano em quatro "abrigos especializados" localizados nos bairros de Campo Grande e Guaratiba. As unidades são geridas pela ONG Casa Espírita Tesloo, que é presidida por um policial militar reformado e questionada pelo Tribunal de Contas do Município (TCM) por seus contratos com a prefeitura, que somam 67 milhões de reais somente na gestão de Eduardo Paes
O relatório questiona a falta de dados e informações sobre os resultados dos tratamentos e aponta para violações de diretrizes dos Ministérios da Saúde e do Desenvolvimento Social, evidenciadas no isolamento das crianças e adolescentes e na orientação religiosa das metodologias aplicadas. As entidades que participaram das fiscalizações alertam para o regresso à lógica manicomial de internação no Rio de Janeiro e para uma "confusão deliberada entre Saúde e Assistência", uma vez que os abrigos são de responsabilidade da Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS), mas que por vezes assumem características de clínicas de internação para usuários de drogas.
Participaram das visitas e da elaboração do relatório os conselhos regionais de Psicologia e Serviço Social, o Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio, o Grupo Tortura Nunca Mais e a ONG Projeto Legal, além da Comissão de Direitos Humanos e de organismos de prevenção e combate à tortura da ALERJ. Veja mais abaixo um resumo do conteúdo do documento.
RESUMO DO RELATÓRIOIsolamento e encarceramentoA privação do contato e do convívio familiar e comunitário foi o primeiro aspecto que chamou a atenção da equipe de fiscalização. Os abrigos estão localizados em endereços de difícil acesso e a própria equipe de fiscalização relatou dificuldades para encontrar os estabelecimentos, que recebem crianças e adolescentes recolhidas compulsoriamente em diversas áreas da cidade, a até 60 km de distância do local.
Para piorar, há uma limitação para contato telefônico com a família que varia entre apenas um ou dois dias por semana, dependendo do abrigo, bem como apenas um ou dois dias para visitação. As crianças e adolescentes passam o dia inteiro no abrigo, com raríssimas atividades externas, e ficam proibidos até mesmo de ir à escola.
Medicalização descontrolada
O relatório constatou a "medicalização diária e generalizada de seus abrigados" nas quatro instituições vistoriadas. As equipes foram informadas que os garotos abrigados tomam, por padrão, quatro tipos diferentes de medicamentos diariamente, além de injeções compostas por Haldol e Fenergan (os chamados 'SOS' ou 'Sossega Leão'), caracterizando a prática recorrente de contenção química das crianças e adolescentes. Além disso, constatou-se que os mesmos medicamentos são usados na mesma dosagem em meninos de diferentes idades e complexões físicas, sem que tampouco sejam levados em conta aspectos psicológicos e socioculturais.
Falta de dados e informação
Há falta de dados e de informação consolidada sobre os efeitos do tratamento. Não há relatórios sobre a evolução clínica dos garotos e garotas. A única clareza que se teve, através de relatos de funcionários, é que o número de reincidências no tratamento é altíssimo. Relatos dão conta de crianças que foram recolhidas compulsoriamente por até três vezes em um curto espaço de tempo, bem como de crianças que ficam três meses em um dos estabelecimentos (tempo máximo de permanência) e que, em seguida, são transferidos para outro da mesma organização gestora, sem que para isso haja avaliação e justificativas técnicas.
'Internação' ou 'abrigamento'?
A partir destes fatos e das entrevistas realizadas com gestores e funcionários, a conclusão do relatório é a de que existe na política da prefeitura uma "confusão deliberada" entre 'internação' e 'abrigamento', isto é, entre tratamento clínico para usuários de álcool e outras drogas e assistência social. "Esses 'abrigos especializados' são registrados nos órgãos e conselhos de assistência, e não naqueles de saúde. No entanto, há uma sobreposição do tratamento à dependência química em relação ao acolhimento socioassistencial", diz o texto do documento, que afirma que "isso parece ser confuso inclusive para os trabalhadores desses locais A volta do modelo manicomialPara Alice De Marchi, psicóloga do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, que participou das fiscalizações e da elaboração do relatório, a concentração destes diferentes aspectos em um único equipamento representa um retrocesso nas políticas de Assistência Social e de Saúde Mental: "Essa é a própria lógica da instituição total, encontrada em manicômios, na antiga FEBEM, em presídios", afirma, destacando também o caráter de privação de liberdade encontrado nos estabelecimentos que foram fiscalizados. "A política de recolhimento compulsório flerta perigosamente com o modelo manicomial de institucionalização e exclusão do convívio social", reforça.